04/05/2013

A ORIGEM DA OBRA DE ARTE
Martin  Heidegger

Antes de tudo, é necessário  evitar todas as teorias filosóficas e interpretações comuns que pretendem atingir  o ser do instrumento, pois, na verdade, elas apenas o escamoteiam. O caminho mais seguro é, sem dúvida, o da simples descrição... Tentemos descrever  um ser-instrumento bem simples: um par de sapatos de um camponês.
Olhemos para o conhecido quadro de Van Gogh, que pintou várias vezes esses sapatos, por meio de esparsos e decididos golpes de pincel. Mas o que existe de especial a ser visto no quadro? Aí estão os sapatos, sejam eles de que tipo forem, com as solas e a pala de couro, percorridas pelas costuras  e os pregos. Seu material e sua forma  variam de acordo com sua finalidade: trabalhar, dançar. etc... Tudo isto apenas reforça o que ja sabemos: o ser do instrumento, enquanto tal, consiste em  servir para alguma coisa. Mas será esta a realidade essencial do instrumento? Não demos explorá-la melhor?  A  camponesa usa seus sapatos na terra lavrada, pois é aí que os sapatos são o que realente são. Quanto menos atenção a camponesa dedica a eles em seu trabalho, mais eles se prestam ao serviço de alguma coisa, mais correspondem ao seu ser. [...] Trata-se  de uma par de sapatos de camponês, e nada mais. No entanto,  não é só isto...
Observemos as sombras  de aberura de seu interior ja gasto, onde se esboça a fadiga do andar laborioso, e eis que percebemos  os passos rudes, pesados e fatigados do camponês que, sob um vento avassalador, imprime, com sua marcha lenta, grandes e monótonos sulcos na terra lavrada... No couro engordurado pela terra fértil e negra e nas duas solas imóveis, desliza a solidão dos vastos espaços das tardes do campo. No par de sapatos, eclode o secreto apelo da Terra, o cuidado pelo pão de cada dia na promessa do trigo, as auroras glaciais, as tardes enigmáticas à espreita do inverno. Através desse instrumento, o camponês experimenta o exercício pela sobrevivência, a doce espera do filho que retorna à casa, a alegria de sentir a vida, o cuidado de temer a morte.
É provável, entretanto, que só possamos entender o ser do instrumento porque ele está sendo observado no quadro. A camponesa, ao contrário, ao desatar os laços dos seus sapatos, em meio à fadiga do crepúsculo, para voltar a usá-lo quando vem a aurora, não pensa em sua utilidade: usa o par de sapatos, simplesmente porque neles confia, e nada mais. Se, portanto, a instrumentabilidade do instrumento reside em sua utilidade, esta, por sua vez, repousa na plenitude de um ser mais essencial do instrumento. Nós o nomeamos "ser de confiança" [...] Por confiar no instrumento, a camponesa pode sentir que a Terra se faz cada vez mais familiar, o mundo cada vez mais seu.
Chegamos à essencia do instrumento. Mas não a descrobrimos descrevendo um par de sapatos de camponês que existe na realidade, explicando de que forma foi fabricado, ou ainda examinando sua utilidade. Descobrimos a essência do instrumento servindo-nos da comtemplação de uma obra de Van Gogh. Esta se expressou. Colocamo-nos em sua presença e repentinamente deslocamo-nos para outra dimensão: a obra de arte nos revelou toda a realidade do par de sapatos... (Heidegger, 1986, pp. 204-207)